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RELEASE NR.01/UNITA/ MEMORANDUM ON NON-COMPLIANCE BY THE MPLA 1975-1998 |
URBANO
CHASSANHA angola nonde os guerreiros não dormem I — CAUSAS Para
compreendermos as causas deste conflito interminável teremos forçosamente de
fazer uma viagem ao passado recente, isto é, à época do surgimento dos
chamados «históricos» movimentos de libertação. Posteriormente, fazermos
uma incursão às origens desses movimentos para podermos compreender quão
antigo é o antagonismo que reina
entre eles e que infelizmente se arrasta até aos dias de hoje. É discutível qual foi o
primeiro movimento de libertação em Angola. Os militantes do MPLA dizem que
foi o seu, fundado em 1956, e que iniciou a luta armada no dia 4 de Fevereiro de
1961; há, porém, os que dizem que o primeiro movimentação de libertação
foi a UPA, mais tarde FNLA, que iniciou a sua luta armada contra o colonialismo
português no dia 13 de Março de 1961. A UNITA surgiu no dia 13 de Março de
1966, portanto, cinco anos mais tarde. Se é importante para a história,
e apenas para isso, saber o que cada movimento foi de facto, já não se pode
compreender que essa referência histórica continue a alimentar antagonismos até
aos dias de hoje. Este antagonismo entre os movimentos de libertação de Angola
deve-se ao facto de cada um ter querido sempre para si o exclusivo da
legitimidade e autenticidade,
excluindo os outros. Assim, seria o MPLA o único e legítimo representante do
povo angolano porquanto os outros movimentos
seriam reaccionários e fantoches ao serviço do imperialismo. Esse espírito de exclusão não
se aplica genericamente a todos os quadros do MPLA mas apenas a uma das tendências
no seio deste movimento. Conheço figuras
ligadas ao MPLA que colocam sempre acima da mera questão partidária o
interesse nacional, aliás como seria desejável para todos sem excepção. Por muito reaccionária que
tivesse sido a UPA-FNLA aos olhos do MPLA, não é possível negar que esta
organização participou na luta de libertação. E sejamos honestos para
reconhecer que a célebre frase de Salazar «Para
Angola, rapidamente e em força !...»
foi uma resposta aos massacres que
a UPA-FNLA desencadeou no Norte de Angola. Pelo contrário, o MPLA, salvo
muita propaganda à mistura, tirando o 4 de Fevereiro, que os historiadores
ainda hesitam em atribuir a este movimento (todos se inclinam mais para um movimento
popular espontâneo que visava libertar das cadeias compatriotas seus), apenas
tem como prova do seu combate — e
este sim — o ataque ao quartel de
Karipande, no saliente de Kazombo, levado a cabo por Hoji-ya-Henda.
Os ataques da UNITA aos quartéis
portugueses de Kassamba, no dia 4 de Dezembro,
e o célebre ataque a Teixeira de Sousa, no dia 25 de Dezembro de 1966,
demonstram inequivocamente a sua participação na luta de libertação
nacional, além dos vários ataques ao Caminho de Ferro de Benguela. Este
movimento fundamenta a necessidade do seu surgimento no facto dos outros
movimentos de libertação não terem uma implantação de facto dentro do
território, porque as suas direcções, comodamente instaladas em santuários
nos países vizinhos, e por vezes mais longe, não tinham a mínima noção do
que se estava a passar no solo pátrio.
O não reconhecimento da luta
dos outros fez com que a intolerância se instalasse no seio da família
angolana, e para isso também contribuíram, em grande medida, estrangeiros que,
por comungarem a ideologia com alguns movimentos angolanos, começaram por
denegrir os outros. Quando, por exemplo, o major general Pezarat Correia diz, no
seu livro Do Alvor a Lusaka,
que as áreas onde a UNITA operava eram calmas durante a guerra colonial, ou está
a usar de uma brincadeira de mau gosto ou está deliberadamente a mentir. Para
mais, trata-se de um insulto à memória dos soldados portugueses tombados
naquelas áreas e que apenas cumpriam ordens dos seus superiores hierárquicos. Provavelmente, o major general
esqueceu-se de que, em Angola, a palavra Cuemba se tornou, por força
das circunstâncias, sinónimo de tropa.
Ir para a tropa era tropa. Ir para a Cuemba
ser-se cuemba
era ser-se militar.
Cuemba era a fronteira, era o cabo das tormentas. Ora, para quem não saiba ou
eventualmente esteja esquecido, era precisa e exclusivamente a UNITA que operava
nas áreas do Kuemba, do Munhango, Mukunha, etc. O Leste de Angola era, a partir
de 1966, indiscutivelmente uma zona muito mais operacional do que o Norte do País.
Não quero dizer com isto que a UNITA fosse o único movimento de libertação a
operar no Leste do País. O MPLA mantinha também aí a sua presença,
especialmente nas áreas do saliente de Kazombo, Muié, Mavinga, etc. Cheguei
mesmo a conhecer bases antigas do MPLA na nascente do Rio Côa e Cumassa, próximo
do Lupiri, nas Ilhas do rio Kuando, especialmente na N’Doca, etc. Palmilhei
toda essa antiga zona do MPLA em companhia de um seu antigo guerrilheiro, e que
agora é oficial da UNITA, umas vezes chamado M’Bomboko e outras Kañeneñene,
e que se tinha especializado na construção de pontes na ex-União Soviética.
Mostrou-me quase todas as antigas bases do MPLA, pelo que nunca me passará pela
cabeça ocultar esta realidade. Foi, porém, a UNITA que abriu
esta frente Leste. Mais a norte, a FNLA operava
também nas áreas do Luma-Cassai. A UNITA operava intensamente na estrada que
liga o Luena ex-
-Luso a Lumbala N’Guimbo ex-Gago Coutinho, em toda a extensão do
Caminho de Ferro de Benguela desde Cuemba até ao Luena, em Kangamba, Kassamba,
Mutumbo, Munhango e Mukunha que não eram propriamente
áreas pacificadas. Foi o movimento que efectuou a maior emboscada de
toda a guerra colonial ao exército português, na estrada entre Nhunha e Kuete
ex-Alto Kuito, pelo que se torna irónico dizer que o exército português
mantinha óptimas relações com quem matava soldados portugueses. Todos sabem, pelo menos os que
passaram pelo exército português, que, naquele tempo, a abertura do quartel
dos Dragões, em Silva Porto, actualmente Kuito, tinha como objectivo travar o
avanço da UNITA naquelas áreas. E se isto não bastasse, acrescente-se o facto
de, a certa altura, a SWAPO viver e ser treinada
nas bases da UNITA em Angola. Era daí que partia para incursões na Namíbia. Pôr
em causa a autenticidade da UNITA coloca também em causa a da própria SWAPO. Por seu lado também é amiúde
referido que o MPLA era uma filial do Partido Comunista Português, etc. A
conclusão que eu tiro é que, de uma maneira ou outra, todos os movimentos de
libertação contribuíram de uma maneira substancial para o fim do
colonialismo. Poderão dizer que uns mais do que outros, o que eu não ponho em
causa. Agora que todos participaram é uma verdade indesmentível, sendo
pena que não o tivessem feito em conjunto. Não condeno o fundo e a forma
que cada um escolheu para levar a cabo o seu combate no seu próprio tempo e
circunstância. Na altura pensaram ser o método mais acertado e ninguém se
deve envergonhar desse facto. Já Willy Brandt dizia: «Quem aos 18 anos não é marxista-leninista não tem coração e quem,
aos 30, ainda se mantém
marxista-leninista não tem cabeça.» A SWAPO trocou de aliado,
passando da UNITA para o MPLA. Fê-lo quando as circunstâncias assim o ditaram
e não tem de prestar contas a ninguém por esse facto. Também a UNITA,
circunstancialmente, teve de aliar-se à África do Sul. Não há aliados
permanentes mas sim interesses permanentes.
Já não me lembro onde ouvi uma
história bastante curiosa acerca deste assunto. Um indivíduo cai para um poço
bastante profundo. Depois de infrutíferas tentativas para sair, chega à
conclusão de que está condenado a morrer ali. Nisto, o vizinho mais detestado
por ele deita-lhe uma corda. E aí começa a luta entre o consciente e o
subconsciente. Não gosto dele porque é um facínora, é um indivíduo sem escrúpulos,
é a escória da sociedade. Portanto não agarro a corda.
Prefiro morrer aqui no fundo do poço a sair auxiliado por ele. Ou então
agarro a corda, saio do poço e digo-lhe posteriormente que se soubesse que era
ele que me deitava a corda, preferia apodrecer ali dentro. É humano
sair do poço, especialmente quando se tem responsabilidades, filhos para
criar e sobretudo uma tarefa que não concluiu. Sobreviver faz parte do instinto
natural do homem. Os princípios são muito bons quando discutidos à frente de
uma caneca de cerveja num bar qualquer de uma próspera cidade onde o perigo não
espreita e onde todos se tornam os mais valentes. É fácil condenar o outro,
difícil é vestir-lhe a pele. Seria possível dizer que os
Estados Unidos da América e a ex-União Soviética comungavam a mesma ideologia
apenas porque os Estados Unidos da América prestaram ajuda à ex-União Soviética
durante a Segunda Guerra Mundial? Não será mais sensato dizer que era apenas
porque tinham um inimigo comum? Quem não sabe que os Estados Unidos da América
apoiaram Mao Zedong na sua luta contra os japoneses? Se julgarmos quem quer que
seja nas lides políticas pelas alianças tácticas não demonstramos rigor mas sim radicalismo ou hipocrisia
pura. Guerras justas são sempre as nossas e podem justificar tudo. Os outros
fazem sempre guerras injustas e as suas alianças momentâneas são
permanentemente incoerentes. Quando quisermos analisar o
pensamento dos nossos líderes, que nos legaram essa herança, temos de ter
sempre presente o seguinte: os do MPLA eram na sua grande maioria urbanos, e
consequentemente a revolução escolhida por eles não poderia ser outra senão
a revolução do proletariado. Mas se olharmos atentamente para a situação
social do País de então, e o analisarmos
em termos de classes sociais, concluímos que o operariado propriamente
dito atingia uma pequena percentagem, quase insignificante, pelo que se tornou
necessário aliar a força camponesa à revolução. Claro está que seriam os
intelectuais revolucionários e o operariado a constituir a sua vanguarda,
portanto uma minoria sem expressão. Tentar fazer uma guerra de
guerrilhas vitoriosa com a mentalidade do comodismo, sem espírito de sacrifício,
não é só perder tempo como — e aqui arrisco mesmo dizer — impossível. A
técnica de mobilização, a disciplina a impor, o contacto com as largas massas
de soldados e do povo, etc., são incompatíveis com a direita. Também na
altura, portanto, nas décadas de 50 e 60 as lutas de libertação tinham quase
sempre como suporte a ex-União Soviética, que colocava acima de tudo a sua
perspectiva política de longo prazo, enquanto os Estados Unidos, que se moviam
por uma perspectiva económica de curto prazo, hesitavam entre o apoio às potências
coloniais e o apoio a certos movimentos de libertação para contrabalançar o
protagonismo soviético. Este estado de coisas fez com que a maioria dos
contestatários à presença colonial nos seus respectivos países procurassem o
apoio da União Soviética, que, como se sabe, não se fazia esperar. Houve
ainda os que procuraram apoio na China de Mao Zedong,
a qual se consubstanciava apenas em formação de quadros da guerra de
guerrilha. Vamos apenas referir o que
sempre nos disseram os fundadores da UNITA. Com os outros dois movimentos de
libertação já em acção, um apoiado pela União Soviética e outro apoiado
pela China e posteriormente pelos Estados Unidos
com um olhar crítico e selectivo, os
fundadores da UNITA chegaram à conclusão de que a guerrilha que Mao Zedong
levou a cabo de uma maneira vitoriosa assentava no meio rural, portanto nos
camponeses. Esse tipo de revolução ajustava-se mais à nossa realidade do que
a ideia do operariado que, como dissemos, era uma minoria insignificante em
Angola. Além disso, havia a estagnação da luta de libertação nacional,
originada pela ausência das lideranças na condução directa da luta no
interior do País. Assim, era mais realista fazer
uma revolução de tipo chinês, assente no campesinato do que enveredar por uma
do tipo soviético, que tinha no operariado a sua vanguarda. Propunha-se também
manter a liderança permanentemente no interior do País. Os intelectuais revolucionários
optaram por escolher a escola restritiva ou homogénea, de forma a manterem o
cordão umbilical com as suas origens. É assim que o MPLA foi o que teve maior
sucesso em termos de clandestinidade no seio urbano, especialmente em Luanda. A
UNITA foi a que se conseguiu implantar melhor no seio rural, embora tenhamos de
reconhecer que uns e outros conseguiram de alguma forma penetrar em certos casos
nos palcos uns dos outros. Passo a contar uma passagem
deveras importante da minha vivência como guerrilheiro da UNITA, que igualmente
testemunha a implantação do MPLA no seio rural. Quando em 1983 avançámos sobre
o saliente de Kazombo, aquele pequeno quadrilátero saliente do lado direito da
carta geográfica de Angola, que faz fronteira a norte com a República Democrática
do Congo, ex-Zaire, e com a República da Zâmbia a leste e a sul, mais
propriamente nas áreas de Lumbala Kakengue e Karipande, na tentativa de
mobilizar as populações, nós tínhamos naturalmente de falar mal do MPLA,
porque era afinal o nosso inimigo. Ficámos surpreendidos quando os mais-velhos
da área nos disseram, com toda a coragem e dignidade, que do MPLA podíamos
falar mal à vontade mas do Hoji ya Henda não. Consideravam-no
um grande patriota. Ora Hoji ya Henda tinha sido um
comandante do MPLA daquela área na guerra anticolonial. Por outro lado, o que
prova que todos, de uma maneira ou de outra, contribuíram na luta anticolonial
é o facto de, nas prisões de São Nicolau em Angola, no Tarrafal, em Cabo
Verde, etc., os nacionalistas angolanos terem diferentes filiações partidárias.
Por exemplo, Geremias Kussia e Tchiuka Biank,
dois nacionalistas da UNITA, conheceram as agruras de São Nicolau. César
Kaliengue, antigo funcionário do Caminho de Ferro de Benguela, conviveu no
Tarrafal com eminentes personalidades do MPLA. Isto apenas para citar alguns
exemplos. Em conclusão: deveríamos ter a
coragem de nos reconhecermos uns aos outros como parte integrante e incontornável
do xadrez político angolano. As gerações mais novas têm dificuldades em compreender este estado de coisas e continuam a ver com desagrado a maneira como é gerido o nosso País. Dizem: lutaram contra o colonialismo português e não fizeram mais do que o vossa obrigação mas isso não vos dá o direito de não nos permitirem estudar, de não termos uma saúde aceitável e de não podermos sequer ter orgulho na nossa terra. E apelam: cessem a destruição do País! Fazem lembrar a galinha que come os seus próprios ovos.
Para se compreender
o estado de espírito que animava os nossos líderes de então, e que estão
na origem da fundação dos movimentos de libertação, temos de abordar questões
mais sensíveis e que quase não se discutem porque se constituem
permanentemente em tabus e dogmas. Se quisermos analisar Angola no seu todo,
teremos de colocar na mesa aquilo de que gostamos e aquilo de
que não gostamos. Aquilo de que todos gostamos nunca será um pólo de
divergência. Mas aquilo de que não gostamos, e que infelizmente não é pouco,
é que tem de deter a nossa atenção para a procura de soluções. Embora queiramos admitir que com
o slogan do MPLA «Um só povo, uma
só nação»
apenas se pretendia a unidade, não
passa de boa vontade. Verdade se diga, Angola é um mosaico de vários povos e
nações que, por força da Conferência de Berlim, comungam um mesmo espaço
territorial. E mesmo que a carta da OUA consagre essas fronteiras, nunca o povo
foi consultado acerca de tal assunto. Não devemos chorar sobre o
leite derramado. Está consagrada na Carta da OUA e é assim que deve
permanecer. Talvez seja mesmo a fórmula mais acertada para se evitarem ainda
mais conflitos. Mas — e isto é fundamental —os dirigentes desses espaços
territoriais terão de ter em conta e nunca esquecer que estão governando povos
diferentes com culturas diferentes, com tradições diferentes, com passados
diferentes e, sobretudo, com sensibilidades diferentes. O tribalismo, o racismo, as
religiões, etc. são aspectos que jogam muito na maneira de pensar e de agir de
cada angolano. Há uma tendência cada vez
maior para se evitar a abordagem desses problemas. Chego por vezes a pensar que
até os termos que usei são demasiados fortes como, por exemplo, pretender
chamar tribalismo
ao não reconhecimento do passado, das
culturas e tradições de outrem. Mas este fenómeno existe e está
intrinsecamente ligado aos movimentos de libertação. Todos eles gostariam de
ver escrito na história não só o seu contributo na luta de libertação
nacional mas também o reconhecimento de facto dos seus heróis. Como dizia, não
reconhecer os homens que no passado influenciaram o pensamento dos actuais líderes,
independentemente das suas áreas de origem, ignorar deliberadamente os que, por
ideais, sofreram as agruras das cadeias, cria logo à partida um sentimento de
exclusão e de frustração. A história oficial recente de
Angola resume-se ao MPLA. Alguém conhecerá — porque eu
não conheço — um único combatente da FNLA ou da UNITA condecorado por altos
serviços prestados à Pátria? Alguém conhecerá — porque eu não conheço
— uma única iniciativa do MPLA para reconhecer o combate que os outros
movimentos levaram a cabo contra a ocupação colonial portuguesa? A história de Angola escrita
pelo MPLA ou elementos a ele afectos fala de heróis nacionais como N’Zinga
M’Bandi, Ekuikui, Mandume, N’Gola Kiluange, etc., todos eles de um passado
mais ou menos distante. Para sermos verdadeiros teremos de referir que não
resistiam como angolanos mas como defensores dos seus próprios reinos, embora
por vezes procurassem alianças com outros reinos vizinhos. Não podemos por isso considerar resistência à ocupação
de Angola como estrutura política
unificada. Nero foi um imperador
romano e não italiano, Sertório e Viriato, por exemplo, defenderam o reino dos
Lusitanos e não Portugal, porque simplesmente Portugal não existia na altura.
Tal como Aníbal foi um grande
chefe cartaginês e não um general tunisino. Concordo perfeitamente que os
reis e outros comandantes militares que opuseram resistência à ocupação
colonial de todos os territórios que mais tarde integraram o espaço de Angola sejam considerados heróis
nacionais. A isso ninguém se opõe. Mas a minha questão diz respeito a quem de
hoje deve ser considerado herói angolano. Que eu saiba, apenas os heróis
afectos à história do MPLA mereceram esse epíteto. Devido a esta exclusão, por
exemplo Pedro Afamado, do ELNA braço armado da FNLA, que foi uma autêntica dor
de cabeça para o exército colonial português, apenas porque se filiou no movimento errado não é o herói que
merecia ser. Faleceu anónimo, anos mais tarde, já nas FAPLA, depois de ter
aderido à política de clemência do Governo. Eduardo Ekundi, que ainda conheci
em vida, quase completamente senil e apenas às vezes com certos lampejos de
lucidez devido à sua idade extremamente avançada, foi assassinado, assim como
a sua digníssima esposa, por um bando de miúdos das FAPLA a partir do Chiumbo.
Soubessem eles que Eduardo Ekundi era um proeminente patriota, soubessem eles da
Escola Salva Terra, e provavelmente não o teriam feito. O MPLA
falhou quando não teve a sensibilidade de saber o que ele representava
para o povo do centro de Angola. Foi essa exclusão que reduziu a
FNLA àquilo que é hoje, um partido político quase sem expressão. O não reconhecimento mútuo faz
com que aspectos que são vitais para uns sejam espezinhados pelos outros. Nunca
ninguém com responsabilidades perguntou:
— Afinal o que é que te aflige? O que é que da tua parte é tão vital que tenha de ser
reconhecido pela história? Quando, sem tabus, sem nos
envergonharmos do passado, conseguirmos agradar a gregos e a troianos, estará
finalmente Angola pronta a emergir das cinzas e projectar-se para o futuro com
confiança, podendo cada um sentir-se angolano em Angola. Tem coragem
um povo que canta «Kapalandanda
wa lila; wa lilila ofeka yahe; yilo ofeka yoku loya, ka loyele a tunde mo!...»,
que quer dizer Kapalandanda chorou, chorou pela sua terra...Esta terra é de combate,
quem não luta saia!,
que canta «Lomwé ondendela
ndi mola onganga wé», que quer
dizer, traduzido à letra, Ninguém
me rende, sou filho de feiticeiro.
Depois de esforços infrutíferos para libertar o seu irmão Dunduma, que tinha
sido feito prisioneiro por Silva Porto, esforços que incluiram
uma tentativa de pagar com marfim e outros produtos a fiança do irmão,
Kapalandanda, impotente, chorou. Depois do pranto, enxugou as lágrimas e
sentenciou: — É preciso secar a pólvora! Esgotadas que foram as
tentativas da libertação do irmão por meio do diálogo e até pagamento de
fiança, só lhe restava fazê-lo por meios violentos e mobilizou toda a população
para a guerra contra os portugueses. É preciso secar a pólvora, pois, tudo
dava a entender que o português apenas entendia a voz das armas. Na outra canção,
Ninguém me rende, sou filho de
feiticeiro, o fundo da questão
prende-se com o facto de
antigamente os filhos dos feiticeiros serem os escravos, aproveitados para os
trabalhos mais baixos e duros. Ser filho de feiticeiro era sinónimo de ser um
eterno sofredor. Para os ovimbundos, que têm ainda bem presente na memória o
contrato nas roças de café, para um povo que ainda há pouco tempo era
utilizado para todo o tipo de serviço considerado baixo, para um povo que via
em Eduardo Ekundi, em Loth Malheiro Savimbi, em Pedro Paulo os arautos da sua
dignificação, jamais sossegará enquanto justiça lhe não for feita. E justiça,
para eles, não é o poder. Justiça, para eles, não é a vingança. Justiça,
para eles, é sobretudo o reconhecimento de que também lutaram, também
resistiram, também tiveram homens que lhes serviram de ideal. Quando se fala de nacionalismo
angolano ressalta apenas aquele que, por ter emergido em Luanda, foi, como era
de esperar, mediatizado, em detrimento completo do nacionalismo do centro do País,
que é quase desconhecido. Já Luanda era colonizada há
mais de quatrocentos anos e ainda em 1902, no Bailundo, Mutuyakevela opunha
feroz resistência à presença portuguesa. O Leste do País só foi considerado
pacificado em 1923 e no Cunene o
povo Kuanhama ignorou sempre e por completo as leis portuguesas. Nomes como Eduardo Ekundi, Pedro
Paulo, Loth Malheiro Savimbi serão sempre referências obrigatórias no centro
do País. O nome de Muene Bandu será sempre referência para os Bundas, etc.
Provavelmente noutras regiões haverá também referências e sensibilidades que
não são conhecidas em todo o espaço nacional mas que representam para os
povos das respectivas regiões os arautos da dignificação destes mesmos povos.
Poderão retorquir que Zinga M’Bandi, Ekuikui, Muantiavua e Mandume são de áreas
e regiões diferentes. Mas eu estou a referir-me ao passado recente. Para a
reposição da verdade, nomes como o de Eduardo Ekundi têm de estar lado a lado
com o do Cónego Manuel das Neves. Nomes como Holden Roberto têm de estar lado
a lado com o de Agostinho Neto, Viriato da Cruz, etc. Enquanto neste País não houver
o reconhecimento do facto histórico, do passado dos outros, haverá sempre quem
levante estes mesmos povos e o desastre poderá morar perto, muito perto mesmo.
Será isto tribalismo? Deixo à consideração do leitor. Qualquer reforma que se queira introduzir neste espaço
territorial tem de ter em conta os usos e costumes dos diferentes povos, e,
sobretudo, o reconhecimento do seu passado. Caso contrário, uns aceitarão bem
essas reformas, outros com alguma renitência e outros ainda recusá-las-ão
pura e simplesmente. Qualquer tentativa de forçar criará sociedades párias
que podem muito bem ser aproveitadas para complicar a vida ao governo central.
Apenas o desenvolvimento socio-económico apagará com o tempo essas assimetrias
de pensamento. A palavra racismo
já representa em si um tema negativo. Mas
fugirmos dela só adia a solução dos nossos problemas. Com todos os riscos que
acarreta e porque a minha interpretação pode ser a mais errada de todas,
arrisco-me a falar sobre este assunto mesmo que seja apenas para incentivar o
debate. Angola é caso único no mundo.
Existem os negros, os cafusos, os mulatos, os cabritos e os brancos. Os mestiços
dividem-se pois em cafusos, filhos de negro e de mulato,
mulatos filhos de negro e branco e cabritos
filhos de mulato e branco. Havia no passado o preconceito
do adiantamento
da raça e ainda hoje existem reminiscências
desse fenómeno. Os familiares mais próximos incentivavam as mulheres a casarem
com elementos mais claros como forma de adiantar
a raça. Desta forma, a cafusa deveria
casar de preferência com um branco ou, à falta deste, com um mulato; a mulata
estaria bem casada com um branco mas, à falta de melhor, um cabrito servia. E
por aí adiante. Em conversa com uma estudante
universitária angolana, ao discorrermos sobre essa problemática, ela contou-me
a sua experiência pessoal. A mãe dela, que é mulata, casou-se com o seu pai,
um negro, facto esse que causou uma discórdia
na família, que durou anos e anos. A mãe quebrara uma regra de ouro
porque, no conceito familiar,
estava atrasando a
raça. Mas a minha inteligente interlocutora foi mais longe ao afirmar que este
fenómeno, aparentemente ligado ao aspecto racial, na sua óptica tinha mais a
ver com conquistadores e conquistados. E explicava-se: «A mulher, no passado, fez sempre parte do espólio de guerra. Os conquistadores procriavam como queriam e lhes apetecia com as mulheres do povo conquistado. Ai do homem do povo conquistado que tentasse qualquer aproximação com uma mulher do povo conquistador. A mulher dos conquistadores apanhada em tal acto seria imediatamente banida pelos seus iguais.» No caso concreto
tratava-se de raças diferentes, sendo os brancos os conquistadores e os negros
os conquistados. Os cafusos são maioritariamente filhos de mulatos e mulheres
negras, os mulatos filhos de brancos e negras e os cabritos filhos de brancos e
mulatas. Num programa televisivo, em
Portugal, há cerca de um ano ou mais, algo chamou a minha atenção. Tratava-se
de uma entrevista a um professor universitário que por sinal era mestiço. No
calor da entrevista a jornalista indagou: — O senhor, como membro da
comunidade negra... Não chegou a completar a
pergunta porque o respeitável académico, sem mais preâmbulos, interrompeu a
jornalista indagando por sua vez: — Negro, eu!?... Porquê!?...
E continuou: — Os meus progenitores são um branco e um negro. Porque não me
dão a opção de escolher se quero ser branco ou negro? É claro que a jornalista fugiu
imediatamente daquele terreno demasiado escorregadio. O que aquele proeminente
académico não disse embora certamente o saiba é que, aos olhos dos brancos,
ele será sempre um negro. Queira ou não queira, ele será sempre um negro em
França, nos Estados Unidos, na Austrália, na China ou no Casaquistão. Em
Angola, em condições normais, será um mulato. E numa discussão acalorada
pode até muito bem vir a ser chamado de branco. Se falarmos de um americano anónimo,
todos pensarão tratar- -se de um
branco. Se esse americano for negro ou mestiço, terá a anteceder o americano
um pequeno apêndice: negro ou afro.
Mesmo quando a mestiçagem é de 87,5% de branco e 12,5% negro, tratar-se--á
sempre um negro, não tenhamos ilusões. Um meu amigo de infância, o
Figueiredo, dizia em tom de brincadeira: «Se o branco é filho de Deus e o negro é filho do diabo, eu (ele era mulato) sou neto de Deus. Se for o negro filho de Deus e o branco do diabo, eu continuo neto de Deus!» África é
geralmente conhecida como continente negro, e é efectivamente negra a maioria
esmagadora dos povos de África subsaariana. Quando porém nós estudamos a história
do mundo, a tentativa de expansão dos impérios, verificamos que os conquistadores
se foram fundindo com os povos conquistados, dando origem a uma miscigenação
de raças que torna hoje quase impossível, salvo raras excepções, dizer
quem é quem. Mais do que isso, quem é de onde. Se Deus não tivesse dado ao
homem inteligência, curiosidade e sobretudo ambição, provavelmente continuaríamos
puros em termos de raças. Os negros estariam em África, os brancos no Cáucaso,
os vermelhos nas Américas e os amarelos na Ásia, etc. Mas não foi assim. Triste e impensável é que as
gerações actuais tenham de pagar a factura de tais curiosidades e ambições.
O que é que nos resta? No meu entender, é dentro desta miscigenação que nos
foi legada que teremos de tentar viver no máximo de concórdia possível. Faz parte da história que quem
conquista é tentado quase sempre a impor a sua cultura, as tradições e os
seus usos e costumes aos povos conquistados, que geralmente absorvem parte
deles. Mas, também os povos conquistadores absorvem, mesmo que
involuntariamente, parte da cultura e tradições dos povos conquistados. Se porém — e aqui é onde
começa a verdadeira contradição — os povos conquistados conseguem de alguma
forma libertar-se, torna-se quase uma certeza a tendência de regressar às suas
origens, às suas tradições, apesar de não o conseguirem fazer na sua
plenitude porque algo dos invasores ficará para sempre. Agora o que não se
poderá entender é que um país que conseguiu esse feito de libertar--se tenha
que manter por imposição de uns poucos não a
cultura do povo invasor em
detrimento da sua própria mas sim as partes mais negativas dessa cultura. Angola, dizem-me, é o país
mais europeizado de toda a África. É efectivamente europeizado, mas não em
termos de desenvolvimento económico, tecnológico ou progresso social. É sim
nos conceitos que uma minoria mestiça impõe à grande maioria, que continua
africana. Quando falo de mestiça não me refiro à cor da pele mas à maneira
de pensar e agir de uma boa parte de angolanos de todas as cores. O facto de alguns angolanos nem
serem europeus nem africanos cria uma desconfiança quase natural nos que
permanecem africanos de corpo e alma, que continuam a ver inimigos potenciais
nos europeizados ou mestiços culturais, logo, substitutos dos colonos. E essa
contradição agudiza-se quando, por esses mestiços terem permanecido nos
grandes centros urbanos, se tornaram quase
naturalmente herdeiros dos que, por força da descolonização, tiveram
que partir. Como não podia deixar de ser, tornaram-se mais prósperos em termos
económicos. São hoje vistos como novos ricos. O mais grave de tudo, porém, é
que estes detentores do tecido economico-financeiro do País não se preocupam
minimamente em criar condições de educação, de saúde e bem-estar social.
Comportam-se como autênticos estrangeiros. Continua a não existir um esforço
genuíno no sentido de se criarem de facto condições de educação porque os
dirigentes e os mais prósperos em termos económicos têm sempre o recurso dos
seus filhos estudarem no estrangeiro. Desta forma, vedam aos filhos dos pobres a
possibilidade de serem alguma coisa na vida. Há mesmo quem afirme que se trata
de uma estratégia como forma de perpetuar no poder político e económico uma
determinada casta de angolanos. O filho do pobre morre com uma
simples malária porque os hospitais públicos não possuem medicamentos,
enquanto os filhos dos dirigentes e novos ricos têm sempre acesso a clínicas
privadas que cobram os seus honorários em dólares norte americanos Angola é um país
esmagadoramente cristão. Até 1974, ao contrário de Moçambique e Guiné
Bissau, também colónias
portuguesas, a religião islâmica não tinha chegado a este espaço territorial
embora todos os outros países que fazem fronteira com Angola — o ex-Zaire, o
Congo Brazaville, a Zâmbia e mesmo a Namíbia — tivessem fortes comunidades
islâmicas implantadas. Era quase fenómeno único em África. Hoje já existe uma comunidade
islâmica florescente com uma mesquita em Luanda, esperando-se para breve uma
expansão para o resto do País. No entanto, apesar dos angolanos
serem cristãos na sua grande maioria, há um fenómeno que vale a pena abordar.
Eles são simultaneamente cristãos e animistas. O filósofo, o médico, o
historiador, o engenheiro agrónomo, o advogado africanos são eminentemente
animistas. Acreditam no feitiço e na força dos seus antepassados, tal como
acreditam na existência de Deus. Pretendo porém direccionar a
minha abordagem da problemática religiosa ligando-a à política. A Igreja Católica, salvo
algumas excepções, foi sempre apoiante da potência colonial que, como se
sabe, tinha a sua religião como oficial. A Igreja Evangélica, ou Protestante,
como é vulgarmente conhecida, apoiava mais os movimentos de contestação à
presença colonial portuguesa, onde missionários americanos, canadianos e
ingleses foram, de uma forma semiclandestina, passando aos africanos as fórmulas
de resistência à ocupação colonial. E fizeram-no da maneira mais
inteligente. Apoiaram-se sempre na vertente social onde a educação e a saúde
eram as áreas preponderantes como forma de prepararem e equiparem os futuros líderes
com a sabedoria necessária que os levaria indubitavelmente à procura da independência
para aqueles povos. Criaram-se assim grandes missões
evangélicas como as do Dondi, na Província do Huambo, a do Késsua, na Província
de Malange, a Chilonda e Chissamba, na Província do Bié, a do Chilume, no
Bailundo, a Missão de Kaluquembe na Província da Huila, etc. As autoridades portuguesas não
viam com bons olhos essa expansão mas também não se opunham frontalmente. Todos os três líderes que
negociaram com as autoridades portuguesas os Acordos de Alvor, Holden Roberto,
Agostinho Neto e Jonas Savimbi tiveram educação protestante e apenas Jonas
Savimbi teve uma educação também católica quando estudou nos maristas de
Silva Porto. Em Fevereiro de 1992, assisti a
uma entrevista que o director do Sínodo Evangélico do Huambo deu a um grupo de
jornalistas. Ele era peremptório ao afirmar que a Igreja Evangélica tinha
conhecido uma maior expansão durante a gestão do MPLA do que durante a gestão
portuguesa. Porque não gostei e não sabendo ele se eu era ou não também
jornalista, arrisquei-me a perguntar se o Dondi, a maior Igreja do planalto
central, não tinha sido durante anos transformada em quartel das forças
cubanas. E fui mais longe ao perguntar sobre o que era feito da maior biblioteca
evangélica de toda a África que aquela Missão possuía. Uns balbucios entrecortados
foram a resposta e eu percebi tudo. A segurança de Estado estava presente e era
necessário pôr em relevo a liberdade
religiosa que o MPLA concedia. Durante a administração
portuguesa, a Igreja Católica, como já disse, apoiou a presença portuguesa em
Angola e a Igreja Protestante apoiou a revolução. No período que vai da data
da Independência ao período de Bicesse, todas as religiões se ressentiram do
ateísmo revolucionário assentes na endoutrinação marxista-leninista imposta
pelo regime do MPLA. De Bicesse para cá, a Igreja
Evangélica, sem uma liderança de reconhecida autoridade e demasiado
fragmentada entre luteranos, congregacionistas, baptistas, adventistas, etc., não
consegue uma proeminência no contexto político angolano actual, ao contrário
da Igreja Católica, que nunca perdeu o protagonismo. Opondo-se com firmeza a
todo o tipo de violência, a Igreja Católica pronuncia-se frequentemente através
dos seus lídimos representantes na Conferência Episcopal sobre os males da
guerra, opondo-se frontalmente a ela. Também na vertente humanitária e através
da Cáritas, a única organização credível nesta área — pelo menos para
mim, pois mitiga a fome e o sofrimento da população — a Igreja Católica está
presente. Esta obra de excepcional valor e humanidade concede sem dúvida à
Igreja Católica um estatuto privilegiado. Para adquirir o livro Envie um email para: paz_angola@esoterica.ptVoltar ao índice |
Última actualização/Last update 23-11-2000 |